29/11/2007

Pirataria: o Autismo Proposital


Com um certo ar romântico, não poderiam escolher um nome melhor para as cópias não autorizadas de música, filmes e seja lá o que se pretenda duplicar, muito embora, se fôssemos brasileiros do séc.XVIII, não acharíamos nada de romântico nos piratas.

Com o estandarte de artistas famosos e encabeçada pelos executivos de grandes empresas, vemos muita campanha contra a pirataria. Por que então, apesar da concordância politicamente correta ou, sem eufemismos, hipócrita, de que copiar é errado, persistimos, com pouco ou nenhuma culpa, a comprar e partilhar piratas?

Existem dois Brasis e duas piratarias bem distintas: dos incluídos e dos excluídos digitais. A última é tão simplória que me causa calafrios ter que explicá-la.

Quem não tem acesso fácil à internet compra seus cd´s e dvd´s em camelôs. Eles dividem-se naqueles que tem alguma condição financeira e outros de situação mais precária, a grande maioria.

Para quem ganha R$1.300,00 reais por mês, ou até mais, tendo que manter casa, pagar imposto, educar os filhos e não sobra para saúde particular, é tudo muito simples – ele simplesmente não pode pagar R$30 reais em um cd ou R$50 em um dvd. Há duas opções: ou ele só ouve rádio e assiste a filmes da tv aberta ou compra pirata.

Na primeira opção ele estaria condenado a viver com a pouca liberdade de fluxo de 40 anos atrás, e como não é de bom tom ficar preso ao passado, nem aceitar condenações injustas, não há qualquer culpa a sentir-se por piratear a arte, afinal, ninguém vive só de pasto e água.

Não é uma questão de ser intrinsecamente certo ou errado, é a realidade econômica da desigualdade: ou os preços são acessíveis ou haverá cópias a preços acessíveis, não importa o quanto berrem os artistas para que o coitado classe-média-baixa-brasileira abdique do livro didático de seu filho para ouvir legalmente a melancolia crônica sertaneja e outros commodities sonoros.

O segundo caso, daquele que poderia pagar, mas prefere o preço mais acessível, parece com daqueles que têm acesso à internet – ambos poderiam pagar. É indiscutível que, como o jogo do bicho, há uma aceitação geral, por isso as campanhas de convencimento contrário, mas por quê?

Aqui, a resposta é o que faz jus ao nome. Aqui nos sentimos verdadeiros piratas contra o stabilishment. Aqui a indústria opta por ser autista e convida-lhe ao isolamento para salvar a própria pele enquanto eu lhe convido à realidade.

O que comprávamos 20 anos atrás? Enormes LongPlays de vinil. Há 10 anos? Cd´s espelhados. Ainda queremos os cd´s, com sua limitada capacidade para míseras 15-20 músicas, ocupando espaço com suas caixas desajeitadas e quebradiças, incapazes de acompanhar-nos em uma corrida, um passeio de bicicleta? Não preferimos arquivos mp3 e AVI para carregar em qualquer lugar, qualquer hora, sem ocupar espaço, com centenas, milhares de músicas e vídeos, não quero o meu repertório acompanhando-me no carro, em casa, trabalho e no passeio a céu aberto?

A indústria diz não, porém deixe-me ser claro com as gravadoras e seus porta-vozes – eu NÂO quero comprar um cd e NÃO quero pagar R$ 2 reais por música! Os tempos mudaram e as gravadoras ficaram na pré-história digital.

Como eu, um consumidor, quero impor um preço? E os empregos nos bastidores da fabricação dos cd´s?

Retruco - quanto do preço do cd paga o custo do conteúdo (música, software, etc), e quanto custa o produto palpável (o disquinho espelhado, a impressão, a caixa colorida, os impostos pela sua produção, o custo do ponto de venda e seus impostos, etc)?

Repare - um artista e sua banda vão ao estúdio e gravam uma música. Depois de mixado, o que queremos ouvir está pronto e acabado. Há duas saídas: fabricar, colorir, encaixotar, transportar, anunciar e colocar à venda um objeto concreto ou simplesmente colocar o produto diretamente à venda virtual sem maiores despesas.

Na opção velha, o mercado consumidor está restrito a umas poucas quadras dos pontos de venda, cada um envolvendo custos, tempo e impostos. Na escolha da era digital, o mercado consumidor engloba, virtualmente, todas as quadras urbanizadas do planeta.

Moral: o produto da era digital é infinitamente mais barato e o mercado consumidor milhões de vezes superior ao daquele da época de fluxos mais restritos, em que ainda precisávamos tocar nas coisas para sentir o prazer pueril de tê-las.

Não é à toa que não sentimos nada de errado em piratear esses palpáveis. Sem conseguir verbalizar, favor que lhes faço agora, sabemos que o mercado mudou, o produto é outro, que não queremos mais o comércio de 15 anos atrás. Em nossas mentes velozes, acostumadas ao fluxo incessante de informações e sensações, não cabe mais a idéia de pagar R$ 30 reais em um objeto onde vou encontrar 2 ou 3 músicas que quero ouvir repetidamente e o resto que vou acabar escutando por inércia ou R$ 50 reais em um filme que vou ver 1 ou 2 vezes e sabe-se lá quando de novo.

A indústria é autista a essa realidade?

A maioria dos seus alto-falantes é. Levados pela crença de que precisam da indústria, e de que sua falência os abocanhará, os artistas são a face visível desta luta fadada à gargalhada histórica. Não vêem, talvez por cegueira ou medo de mudar, que uma pequena verba para gravar suas criações e divulgá-las na internet fará com que um baiano, um árabe e um chinês ouçam sua música. Além dos shows, contato insubstituível com a sensibilidade humana, propagandas e patrocínios podem vir juntos sem incomodar o ouvinte, como já vemos todos os dias em milhões de sites grátis na net - idéias não faltam, tenho mil sugestões.

Cadê a indústria e seu aparato de empregados, altos salários e glamour nessa equação?

Aí está a resposta para o seu simulacro autista, todo o seu aparelho legal de proteção, o marketing anti-pirataria e o excesso de noticiários atacando o óbvio – o mercado mudou, junto com ele a grande indústria gravadora de músicas e distribuidora de filmes tornou-se obsoleta e, com ela, toda a mão-de-obra que emprega. Os movimentos anti-fluxo, pró-palpáveis, são o último suspiro a render mais alguns minutos de vida às grandes organizações deste mercado.

Não é desumano desempregar toda essa gente? Não mais que desempregar tecelões com a criação da máquina de tear – essa discussão é do início da industrialização. A capacidade de adaptar-se rapidamente é o preço do mundo moderno pelo domínio da natureza – quem não quiser pagá-lo, diz o mundo, que se isole no meio do mato.

No Brasil, as contradições são tão arraigadas na cultura que a mentalidade da população já está na era digital, mas suas mãos não. O melodramático sertaneja, o ordinário trabalhador urbano classe-média-baixa, inseridos na contemporaneidade pela comunicação de massa, ainda não podem baixar produtos na net e levá-los consigo, porém já não aceitam mais o mercado antigo.

Alguns não podem pagar pelo produto antigo, outros podem e já não os aceitam mais e outros são ambos. Em parte, essa complexidade explica a resistência à pirataria no Brasil, mas somente na parte mais velhaca.

O que fazer então? A única resposta segura é que, como os celulares, antes produtos das elites urbanas, a virtualização da vida vai, mais cedo ou mais tarde, alcançar o mato, favelas, subúrbios e os vovôs da tecnologia.

É questão de tempo para que todos os telefones sejam móveis, as músicas, filmes e tudo mais que se carregue em pequenos aparelhos flua livremente pelos espaços exatamente por não ocupá-lo realmente.

A pirataria física, uma contradição em si, é mais o rebento da desigualdade entre as mentalidades e as possibilidades materiais. Já a pirataria digital é a contemporaneidade esgueirando-se entre interesses de mercado rumo ao fim inevitável de encerrá-los no passado junto aos LP´s, são as próprias leis do capital, da oferta e procura em termos crus, atuando contra o poderio daqueles que sempre as pregaram, são as regras do sistema utilizadas contra ele mesmo. Como piratas, não temos remorso de emboscar o sistema pelas frestas, utilizar suas armas, em nossas mentes, somos donos da liberdade de fluxo.

O fenômeno como um todo é uma receita mais profunda - a cópia de marcas, por exemplo, é a irremediável necessidade de consumo temperada com a falta de legitimidade do acesso restrito, tudo remexido na era dos fluxos. Mas chega por hoje, só dei uma resposta à indústria fonográfica por agora, e até agora.

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